Thursday 19 April 2018

Corpos & Carnes


corpos com fome,
phones sem fone, nem crédito,
corpos cansados, mentes com sono,
militantes tão sonhos
pelo afã embriagados,
a cana no sangue fala alto,
a carne no bucho tapa buraco,
no céu da boca a coroa se cala,
a carne, então, a carne,
cheira a pele chamuscada,
fio de cabelo, cordão de ouro embaraçado,
corpos carbonizados nos morros,
corpos alvejados nos carros,
vidros estilhaçados por balas,
mortes mecânicas, incontáveis
corpos se avolumam uns sobre
os outros empilhados como pneus,
esse é o nosso holocausto, meu-e-seu
essa a nossa guerra, Rio nossa Síria,
e ninguém vê, ninguém ouve, por que?
A morte é nosso rastro. Em mim teu corpo
sangra, terra, eu-teu-indígena, resisto ao estrangeiro,
ao forasteiro que devasta esta terra arrasada há 500
anos e não se cansa a máquina de moer gente dentro
de empregos trabalhos fábricas universidades e
há tanto universo mundo a fora, casas asas pratas
os xapiris me contaram, que aquela fumaça mata,
o azogue me mostrou as cores da mata,
a ayahuasca me deu os cantos
e as letras invisíveis dos ícaros,
o rapé dos tukanos saculejaram a alma.
os poemas são papéis de DMT,
minhas veias abertas de uma
África indígena dentro de mim.



Tuesday 10 April 2018

CEGUEIRA



Ou algo diverso, 
já que é possível

conceber o diverso
em si mesmo,

algo assim,
como um desvio. 

Um deus de tudo
o tempo. Uma maré

na paisagem e o ser
já se transmuta,

uma boa liga
com o mundo

de depois
do horizonte,

esse oriente oculto,
essa fresta no escuro,

contra essa

ilusão ocidental.

Wednesday 4 April 2018

INDÍCIOS DE UM POEMA


quando se vai à fonte,/ se chega às raízes...

" a roda grande
passa por dentro
da roda pequena"

"a memória
dos ancestrais
me diz o que
eu preciso fazer"
Há um hino
em todo início
em todo tempo
     [mítico
um totem
um princípio
místico,
e
ainda assim
há um hino
           [hipnótico, conciso,
inscrito no silêncio
vagaroso dos ossos

não podemos cantá-lo
     [nem ouvi-lo
é cedo demais ainda,
ainda não despertamos
para o tempo de morte
e abandono que abocanha,
mas não a todos, há de chegar
a hora em que escafandristas
[escarafunchando escombros marinhos
em paisagens soterradas pelo horror do passado
desossam o futuro embrulhado em papel de presente amarrotado
e
toda carne exposta em sangue é matéria macabra
para o espetáculo nas ruas, nos jornais, impossíveis

toda fome alcança as casas sobe as mesas e enche os pratos
e se derrama pelas estradas entre latifúndios e os mercados
e aquelas paradas nos postos de gasolina.

toda veste, pele, calçado é coisa dada, imposta ou roubada
no calor das necessidades mais ordinárias,

e o amor é raro artigo no mundo depois de ele ter se acabado. 

E enfim em mim
como no início
há um índio aqui
no momento em
que adversários
se viram contra nós
e as árvores são nossa última alternativa
:
ou uma curva, uma dobra, uma tangente.
– O CABOCLO É UM HACKER
: buraco negro, matéria escura, massa cinzenta.

o ancestral
não se impõe
nem obriga,
ele é e está
ao ser-sendo.

minha mãe
já foi ( é )
parteira /
meu pai
um curandeiro

eu

filho da minha vó
sou só eu ( ? )

eu

segurei um pombo
o silêncio no pomo,

oferendas aceitas,
riscos corridos,

apostas feitas
ao fogo
que forja
a forma-tempo
da terra fértil
em terra firme.

hoje,

sangrei um pouco
porque o rio,
aquática matéria,
serpente singra sangue
em meu peito e ardo
e fervo as pedras
no fundo do leito.

Mar-Abril, 2018

Olinda-Tracunhaém-Olinda.