Monday 15 April 2019

Abraço para o Orlando Calheiros e os Aikewara



"Os Brancos só nos tratam como ignorantes porque somos gente diferente deles. Mas seu pensamento é curto e obscuro; não consegue ir além e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. […] Os Brancos não sonham longe como nós. Eles dormem muito, mas só sonham consigo mesmos" (Kopenawa & Albert 2010: 411-12). Recomeço como abri o capítulo final de minha dissertação. Com o xamanismo das palavras amazônicas. Enfim volto a refletir àquelas (estas) palavras. 2018 cede e segue em sede de sonho, soa a hora.
Nos últimos dias andei vertendo em espasmos uma leitura do "Capitalismo como religião" (coisa que há quem viva), de autoria de W. Benjamin, um dos últimos livros que comprei em João Pessoa antes de ir embora da última vez. da última vez Benjamin deixou de ser apenas autor de mais um título na estante, encarnou-se em ossos e fôlego, hoje sai andando. Sonho "a política do sonho contra o Estado: não o nosso “sonho” de uma sociedade contra o Estado, mas o sonho tal como ele é sonhado em uma sociedade contra o Estado." e para conhecer é preciso estranhar-se, logo, " todo sujeito é sempre um outro"sujeito", e é sempre mais um".
Um duplo, seu outro. A raiz do barro, o pó da terra. O literal cosmológico ou o dado cosmogônico do agora, seja temporal ou alegórico é que foi preciso que yámi oxorongá, com seus pássaros na mais alta árvore, por meio de uma futura yanifá desfizesse o que um dos cativos de Odé foi na mata caçar e cativar também por sua vez uma escrava de Iemanjá, por isso tanto mar. Só que as Yámis quando acabam com algo não o fazem pela metade nem sem prazer, elas podem destruir até aqueles que a invocam, seja por medo do risco da revolta de verem o seu feito realizado, ou seja por simples garantia de cumprimento de seu trabalho.
A destruição é consubstanciar todo objeto do fascínio e o sentimento de indignação que move a ação pelo ato em geral corporal e mágico da causação da dor impetrada contra a vítima/alvo da magia. o contrafeitiço contra a bruxaria quando esta não lhes tira a vida, a depender da evolução espiritual da agente, é um mistério silencioso operado em vaga hora soturna. é como se em outras palavras 2017 fosse um grande intervalo de aprendizado sobre como viver depois do fim do mundo.
Depois do Temer, Charlottesville, Rio Doce, (catástrofes em série coletivas e pessoais...) depois de tudo, será que me faço entender? parece que há uma forma melancólica de tudo pairando sobre uma espessa nuvem de pessimismo paralisante como um gás, uma arma química desconhecida. nos parece impossível recuperarmos ou inventarmos uma narrativa cosmogônica possível, nem para nossos clãs, leia-se famílias, nem para coletividades maiores, parece um tempo interrompido, um interdito à "histórias que contem histórias", controvérsias políticas e ideológicas e traduções culturais e poéticas à parte.
Atualizações de ciclos de vida rituais ou a mobilização de recursos mnemônicos à "gestão metafísica da morte" ou o entendimento comum do "xamanismo como diplomacia cósmica" ao menos poderiam reagrupar as forças perceptivas da imperceptibilidade da permeabilidade do passado imantado no presente devir futuros. Não escapamos das transformações entre a experiência e suas perspectivas. A grande passagem ou as várias passagens (vide Benjamin) de uma prosa em escuta ao "espírito-mestre" da floresta e dos animais, sem querer me antecipar, mas 2018 promete uma um colérica e convulsionada estação que se ou desembarca ou se vai à guerra: no nosso caso, narrar a tempestade ou a trégua não é fuga, nem saída, é acender um fósforo de soslaio no túnel não iluminado.
Assim, quando Oxalá-Odudua/Obatalá-Orixalá toma e torna Ifá, oráculo de Oyó, o quebrar das cabaças de onde escorrem o fluxo é um contra-fato/contra-fogo da criação. Um anti-ato criativo. Uma gênese negativa. que encontra seu correspondente negativo positivado, quando Egungun abraça Ikú em consubstanciação à morte, esse -(zero cosmológico)- comum de onde se parte à matéria humana ou à forma ancestral de pedra, planta, bicho, águas, estrela, ou puro vento - "forma- conteúdo", via Oyá-Balé, e ela, em si, revela o gosto nada na boca seca, num WAW...mas não quero fazer filosofia política da natureza cosmológica para máquinas, seus algoritmos e receptores autômatos, se aqui ainda houverem leitores, enfim "A humanidade inteira perecerá nesta varredura purificadora; os Mbyá, porém, serão recriados por Nhanderu, para repovoar um mundo renovado; já os Brancos perecerão definitivamente, desta vez não sobrará ninguém dessa espécie maldita para recomeçá-la."
P. S. * como a que se segue, todas a citações se encontram em: Danowski, Déborah Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fns / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. – Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie : Instituto Socioambiental, 2014.
"Na origem, enfim, tudo era humano, ou melhor dizendo, nada não era humano (jabotis à parte, segundo nossos Aikewara). Um número considerável de mitos ameríndios, e, talvez um pouco menos comumente, de diversas outras regiões etnográficas, imaginam a existência de uma humanidade primordial (seja simplesmente pressuposta, seja fabricada por um demiurgo) como a única substância ou matéria a partir da qual o mundo viria ser formado. Trata-se assim de narrativas sobre o tempo de antes do começo dos tempos, uma era ou um éon que poderíamos chamar “pré-cosmológico” (Viveiros de Castro 2007). Após uma série de peripécias, parcelas da humanidade originária — não completamente humana, pois, embora antropomorfa e dotada de faculdades mentais idênticas às nossas, essa raça primeva possuía grande plasticidade anatômica e uma certa propensão para condutas imorais (incesto, canibalismo) —, parcelas desta “primigente” vão-se transformando, de modo espontâneo ou, mais uma vez, em resultado da ação de um demiurgo, nas espécies biológicas, acidentes geográficos, fenômenos meteorológicos e corpos celestes que compõem o cosmos atual. A parcela que não se transformou, permanecendo essencialmente igual a si mesma, é a humanidade histórica, ou contemporânea."
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2.12.2017


Monday 7 May 2018

Carla Diacov - sons - colo


sons - colo

deita o garfo mudo no meu colo
diz coisas incompreensíveis sobre o amor
diz coisas domesticáveis sobre a vida e o ódio
diz não saber separar a morte da morte momentânea
diz a aflição sobre a comunicação entre gatos
deita a faca nua no meu colo
diz coisas interditadas sobre uma ideia de flor
diz coisas debaixo das unhas dos mortos
entre seus cabelos
deita o prato sujo no meu colo
diz coisas e diz e dança os dedos
deita o copo trincado no meu colo
diz coisas diz coisas e tudo que escuto é o rasgo nesse nosso manso idioma



“Só não besunto a cabeleira.”
Trabalhou na empresa tou teatro
Trabalhou como Empacotadora " Pacote " na empresa Poetry
Trabalhou como Empacotadora na empresa Poesia
De São Bernardo do Campo

Tomaz Amorim - à rosa

trabalhando na edição do meu primeiro livro de poemas que sai no meio do ano. este aqui se chama
à rosa
um brilho forte, uma luz clara
uma manhã branca de inverno
me equilibro desajeitado sobre minhas pernas gordas
inclino o peito para frente e elas seguem
direita e esquerda, uma depois da outra, rápidas para que eu não caia
se quero parar, estico de súbito as costas com cuidado para não virar para trás
nessas curtas corridas, sinto meu peito frio
a baba empapando a blusa de lã se resfria com o vento
incontrolável
sob cuidado permanente
a confiança de que tudo vai ficar bem
sempre tempestuoso, ágil
mas esperto
o espaço destinado ao jardim
que ainda não se concretizou
um cercadinho de blocos vermelhos não rebocados
uma terra marrom talvez autóctone
talvez resto da construção recente da nossa casa
provavelmente mistura dos dois
não cresce ainda a roseira que nos presentearia todo ano, minha mãe
não cresce o pé de café (que nunca colhemos, torramos e bebemos), meu pai
não cresce a palmeira de três corpos siameses, cada uma um herdeiro, minhas irmãs e eu
não sei se a tartaruga já estava lá
vivendo autônoma do próprio jardim
nunca tivemos tempo de dar um nome a ela
(embora tartaruga mesmo seja um nome, e bastante legítimo)
neste pré-jardim, eu, desatento das dores do mundo
tomando você como seu suporte
toda poderosa, benevolente, justa - imortal
que criança pensa em mortalidade?
nenhuma, nem eu, pelo menos até a morte do simba
um pão com manteiga onipresente
um café com leite que hoje já não tomo
um silêncio, uma melancolia transmitida geneticamente
e pelo tipo de sorriso, de olhar
uma cor: cor de rosa
e azul
uma vivência em si, sem função, para ninguém
na verdade, para nós
meu corpo explodindo de energia, gana, curiosidade
em oposição àquela calma
incompreendida então mas aceita
hoje procurada, rara
há algo nesta cena que não é movimento
não é filme, nem mesmo fragmento
nem mesmo um curta-metragem
mas não é também fotografia, mesmo que em longa exposição
não é pintura, mesmo que expressionista
é algo que talvez se move um pouco, sim
para quase em seguida reiniciar
um balanço vagaroso de vagas numa lagoa
um pequeno movimento repetido à exaustão
algo que depois que eu também for
em algum lugar, algum bolsão-ternura do universo
se manterá, em repetição, sem envelhecer
ao contrário da rosa
como a até agora eterna tartaruga
esse tai-chi em gif
ficará e fica em um lugar
em um recife denso
logo após os limites
da ilha-tempo


tomazizabel.blogspot.com / www.revistaforum.com.br/tomazamorim
Colunista na empresa Revista Fórum
Doutorando na empresa USP - Universidade de São Paulo
Gere Blog de Tradução Literária

Wednesday 2 May 2018

A CERTA ALTURA


A certa altura
A dobra do arco
Se encontra no ar
Com a reta da flecha.

A certa altura
A raiz do dendezeiro
Se encontra no terreiro
Com a terra natal.

A certa altura
A rocha da pedreira
Se encontra na alameda
Com o estrondo do trovão.

A certa altura
O ato falho denuncia,
A coisa dada e a tortura
São um mal que atrapalha,

Como ser coisa canalha
Mentir a cara alheia.
O sangue assim que corre
Pelo corpo, pela veia

Assanha a sanha, desperta a flora
Acorda a fauna e apavora
Quem crê na hipocrisia.
E a maresia, que antecede a calmaria,

Vem a noite e vem o dia
E enquanto amanhecia
Eu me encontraria, com
As criações de encantaria.



Thursday 19 April 2018

Corpos & Carnes


corpos com fome,
phones sem fone, nem crédito,
corpos cansados, mentes com sono,
militantes tão sonhos
pelo afã embriagados,
a cana no sangue fala alto,
a carne no bucho tapa buraco,
no céu da boca a coroa se cala,
a carne, então, a carne,
cheira a pele chamuscada,
fio de cabelo, cordão de ouro embaraçado,
corpos carbonizados nos morros,
corpos alvejados nos carros,
vidros estilhaçados por balas,
mortes mecânicas, incontáveis
corpos se avolumam uns sobre
os outros empilhados como pneus,
esse é o nosso holocausto, meu-e-seu
essa a nossa guerra, Rio nossa Síria,
e ninguém vê, ninguém ouve, por que?
A morte é nosso rastro. Em mim teu corpo
sangra, terra, eu-teu-indígena, resisto ao estrangeiro,
ao forasteiro que devasta esta terra arrasada há 500
anos e não se cansa a máquina de moer gente dentro
de empregos trabalhos fábricas universidades e
há tanto universo mundo a fora, casas asas pratas
os xapiris me contaram, que aquela fumaça mata,
o azogue me mostrou as cores da mata,
a ayahuasca me deu os cantos
e as letras invisíveis dos ícaros,
o rapé dos tukanos saculejaram a alma.
os poemas são papéis de DMT,
minhas veias abertas de uma
África indígena dentro de mim.



Tuesday 10 April 2018

CEGUEIRA



Ou algo diverso, 
já que é possível

conceber o diverso
em si mesmo,

algo assim,
como um desvio. 

Um deus de tudo
o tempo. Uma maré

na paisagem e o ser
já se transmuta,

uma boa liga
com o mundo

de depois
do horizonte,

esse oriente oculto,
essa fresta no escuro,

contra essa

ilusão ocidental.

Wednesday 4 April 2018

INDÍCIOS DE UM POEMA


quando se vai à fonte,/ se chega às raízes...

" a roda grande
passa por dentro
da roda pequena"

"a memória
dos ancestrais
me diz o que
eu preciso fazer"
Há um hino
em todo início
em todo tempo
     [mítico
um totem
um princípio
místico,
e
ainda assim
há um hino
           [hipnótico, conciso,
inscrito no silêncio
vagaroso dos ossos

não podemos cantá-lo
     [nem ouvi-lo
é cedo demais ainda,
ainda não despertamos
para o tempo de morte
e abandono que abocanha,
mas não a todos, há de chegar
a hora em que escafandristas
[escarafunchando escombros marinhos
em paisagens soterradas pelo horror do passado
desossam o futuro embrulhado em papel de presente amarrotado
e
toda carne exposta em sangue é matéria macabra
para o espetáculo nas ruas, nos jornais, impossíveis

toda fome alcança as casas sobe as mesas e enche os pratos
e se derrama pelas estradas entre latifúndios e os mercados
e aquelas paradas nos postos de gasolina.

toda veste, pele, calçado é coisa dada, imposta ou roubada
no calor das necessidades mais ordinárias,

e o amor é raro artigo no mundo depois de ele ter se acabado. 

E enfim em mim
como no início
há um índio aqui
no momento em
que adversários
se viram contra nós
e as árvores são nossa última alternativa
:
ou uma curva, uma dobra, uma tangente.
– O CABOCLO É UM HACKER
: buraco negro, matéria escura, massa cinzenta.

o ancestral
não se impõe
nem obriga,
ele é e está
ao ser-sendo.

minha mãe
já foi ( é )
parteira /
meu pai
um curandeiro

eu

filho da minha vó
sou só eu ( ? )

eu

segurei um pombo
o silêncio no pomo,

oferendas aceitas,
riscos corridos,

apostas feitas
ao fogo
que forja
a forma-tempo
da terra fértil
em terra firme.

hoje,

sangrei um pouco
porque o rio,
aquática matéria,
serpente singra sangue
em meu peito e ardo
e fervo as pedras
no fundo do leito.

Mar-Abril, 2018

Olinda-Tracunhaém-Olinda.