Aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro 20/04/2016
Hoje os que se acham donos do Brasil — e que o são, em ultimíssima
análise, porque os deixamos se acharem, e daí a o serem foi um pulo (uma
carta régia, um tiro, um libambo, uma PEC) — preparam sua ofensiva
final contra os índios. Há uma guerra em curso contra os povos índios do
Brasil, apoiada abertamente por um Estado que teria (que tem) por
obrigação constitucional proteger os índios e outras populações
tradicionais, e que seria (que é) sua garantia jurídica última contra a
ofensiva movida pelos tais donos do Brasil, a saber, os “produtores
rurais” (eufemismo para “ruralistas”, eufemismo por sua vez para
“burguesia do agronegócio”), o grande capital internacional, sem
esquecermos a congenitamente otária fração fascista das classes médias
urbanas. Estado que, como vamos vendo vendo, é o aliado principal dessas
forças malignas, com seu triplo braço “legítimamente constituído”, a
saber, o executivo, o legislativo e o judiciário.
Mas a ofensiva
não é só contra os índios, e sim contra muito outros povos indígenas.
Devemos começar então por distinguir as palavras “índio” e “indígena”,
que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que “índio” seja só uma forma
abreviada de “indígena”. Mas não é. Todos os índios no Brasil são
indígenas, mas nem todos os indígenas que vivem no Brasil são índios.
Indios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja
porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação
histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos
europeus. Foram chamados de “índios” por conta do famoso equívoco dos
invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia.
“Indígena”, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de
“indiana” nela; significa “gerado dentro da terra que lhe é própria,
originário da terra em que vive”.1 Há povos indígenas no Brasil, na
África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa. O antônimo de
“indígena” é “alienígena”, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é
“branco”, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias
faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em
português por “branco”, mas que se refere a todas aquelas pessoas e
instituições que não são índias. Essas palavras indígenas têm vários
significados descritivos, mas um dos mais comuns é “inimigo”, como no
caso do yanomami 'napë', do kayapó 'kuben' ou do araweté 'awin'. Ainda
que os conceitos índios sobre a inimizade, ou condição de inimigo, sejam
bastante diferentes dos nossos, não custa registrar que a palavra mais
próxima que temos para traduzir diretamente essas palavras indígenas
seja “inimigo”. Durmamos com essa. Mas isso quer dizer então que todos
as pessoas nascidas aqui nesta terra são indígenas do Brasil? Sim e não.
Sim no sentido etimológico informal abonado pelos dicionários:
“originário do país etc. em que se encontra, nativo” (ver nota 1,
supra). Um colono de 'origem' (e língua) alemã de Pomerode é “indígena”
do Brasil porque nasceu em uma região do território político epônimo,
assim como são indígenas um sertanejo dos semi-árido nordestino, um
agroboy de Barretos ou um corretor da Bolsa de São Paulo. Mas não, nem o
colono, nem o agroboy nem o corretor de valores são indígenas —
perguntem a eles...
Eles são “brasileiros”, algo muito diferente
de ser “indígena”. Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e
talvez ser considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa
definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada,
contada e medida por um Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser
brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão, em outras palavras, 'súdito' de
um Estado 'soberano', isto é, transcendente. Essa condição de súdito
(um dos eufemismos de súdito é “sujeito [de direitos]“) não tem
absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a
terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde
se 'faz a vida' junto com seus parentes e amigos. Ser indígena é ter
como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde
se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um
vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas
periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um
lugar específico, ou seja, é integrar um 'povo'. Ser cidadão, ao
contrário, é ser parte de uma 'população' controlada (ao mesmo tempo
“defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a
Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para
cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente;
ele recebe seus direitos do alto.
“Povo” só '(r)existe' no
plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros
povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quanto
perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”,
ele cortou no ato: “não sou índio; sou Munduruku”. Mas ser Munduruku
significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e
que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os
“índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na
generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial,
imperial, republicano. O Estado, ao contrário dos povos, só consiste no
singular da própria universalidade. O Estado é sempre único, total, um
universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados-nação, cada um é
uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a
forma do Múltiplo. Forçados a se descobrirem “índios”, os índios
brasileiros descobriram que haviam sido 'unificados' na generalidade por
um poder transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados,
homogeneizados, abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de
quem se tirou alguma coisa. Para transformar o índio em pobre, o
primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio
administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem terra.
E não obstante, os povos indígenas originários, em sua multiplicidade
irredutível, que foram indianizados pela generalidade do conceito para
serem melhor desindianizados pelas armas do poder, sabem-se hoje alvo
geral dessas armas, e se unem contra o Um, revidam dialeticamente contra
o Estado aceitando essa generalidade e cobrando deste os direitos que
tal generalidade lhes confere, pela letra e o espírito da Constituição
Federal de 1988. E invadem o Congresso. Nada mais justo que os invadidos
invadam o quartel-general dos invasores. Operação de guerrilha
simbólica, sem dúvida, incomensurável à guerra massiva real (mas também
simbólica) que lhes movem os invasores. Mas os donos do poder vêm
acusando o golpe, e correm para viabilizar seu contragolpe. Para usarmos
a palavra do dia, golpe é o que se prepara nos corredores atapetados de
Brasília contra os índios, sob a forma, entre outras, da PEC 215.
Os índios são os primeiros indígenas do Brasil. As terras que ocupam
não são sua propriedade — não só porque os territórios indígenas são
“terras da União”, mas porque são eles que pertencem à terra e não o
contrário. Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que
define o indígena. E nesse sentido, muitos povos e comunidades no
Brasil, além dos índios, podem se dizer, porque se sentem, indígenas
muito mais que cidadãos. Não se reconhecem no Estado, não se sentem
representados por um Estado dominado por uma casta de poderosos e de
seus mamulengos e jagunços aboletados no Congresso Nacional demais
instâncias dos Três Poderes. Os índios são os primeiros indígenas a não
se reconhecerem no Estado brasileiro, por quem foram perseguidos durante
cinco séculos: seja diretamente, pelas “guerras justas” do tempo da
colônia, pelas leis do Império, pelas administrações indigenistas
republicanas que os exploraram, maltrataram, e, muito timidamente, às
vezes os defenderam (quando iam longe demais, o Estado lhes cortava as
asinhas); seja indiretamente, pelo apoio solícito que o Estado sempre
deu a todas as tentativas de desindianizar o Brasil, varrer a terra de
seus ocupantes originários para implantar um modelo de civilização que
nunca serviu a ninguém senão aos poderosos. Um modelo que continua
'essencialmente' o mesmo há quinhentos anos.
O Estado brasileiro e
seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e
quanto mais rapidamente melhor; fizeram o possível e o impossível, o
inominável e o abominável para tanto. Não que fosse preciso sempre
exterminá-los fisicamente para isso — como sabemos, porém, o recurso ao
genocídio continua amplamente em vigor no Brasil —, mas era sim preciso
de qualquer jeito desindianizá-los, transformá-los em “trabalhadores
nacionais”.2 Cristianizá-los, “vesti-los” (como se alguém jamais tenha
visto índios 'nus', esses mestres do adorno, da plumária, da pintura
corporal), proibir-lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que
os definiam para si mesmos, submetê-los a um regime de trabalho,
polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a
terra. Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação
orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que
vivem da terra — essa separação sempre foi vista como 'condição
necessária' para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre,
naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo
precisa de pobres, como precisou (e ainda precisa) de escravos.
Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais
nada separá-lo de sua terra, da terra que o 'constitui' como indígena.
Nós, os brancos que aqui estamos sentados na escadaria da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 2016, nós nos sentimos
indígenas. Não nos sentimos cidadãos, não nos vemos como parte de uma
população súdita de um Estado que nunca nos representou, e que sempre
tirou com uma mão o que fingia dar com a outra. Nós os “brancos” que
aqui estamos, bem como diversos outros povos indígenas que vivem no
Brasil: camponeses, ribeirinhos, pescadores, caiçaras, quilombolas,
sertanejos, caboclos, curibocas, negros e “pardos” moradores das favelas
que cobrem este país. Todos esses são 'indígenas', porque se sentem
ligados a um lugar, a um pedaço de terra — por menor ou pior que seja
essa terra, do tamanho do chão de um barraco ou de uma horta de fundo de
quintal — e a uma comunidade, muito mais que cidadãos de um Brasil
Grande que só engrandece o tamanho das contas bancárias dos donos do
poder.
A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo
da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a
comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação
entre as pessoas e seus corpos, outra operação indispensável executada
pelo Estado para criar populações administradas. Pense-se nos LGBT,
separados de sua sexualidade; nos negros, separados da cor de sua pele e
de seu passado de escravidão, isto é, de despossessão corporal radical;
pense-se nas mulheres, separadas de sua autonomia reprodutiva.
Pense-se, por fim mas não por menos abominável, no sinistro elogio
público da tortura feito pelo canalha Jair Bolsonaro — a tortura, modo
último e mais absoluto de separar uma pessoa de seu corpo. Tortura que
continua — que sempre foi — o método favorito de separação dos pobres de
seus corpos, nas delegacias e presídios deste pais tão “cordial”.
Por isso tudo a luta dos índios é também a nossa luta, a luta indígena.
Os índios são nosso exemplo. Um exemplo de 'rexistência' secular a uma
guerra feroz contra eles para desexistí-los, fazê-los desaparecer, seja
matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os
“cidadãos civilizados”, isto é, brasileiros pobres, sem terra, sem meios
de subsistência próprios, forçados a vender seus braços — seus corpos —
para enriquecer os pretensos novos donos da terra.
Os índios
precisam da ajuda dos brancos que se solidarizam com sua luta e que
reconhecem neles o 'exemplo' maior da luta perpétua entre os povos
indígenas (todos os 'povos' indígenas a que me referi mais acima: o povo
LGBT, o povo negro, o povo das mulheres) e o Estado nacional. Mas nós,
os “outros índios”, aqueles que não são índios mas se sentem muito mais
'representados' pelos povos índios que pelos políticos que nos governam e
pelo aparelho policial que nos persegue de perto, pelas políticas de
destruição da natureza levadas a ferro e a fogo por todos os governos
que se sucedem neste país desde sempre — nós outros também precisamos da
ajuda, e do exemplo, dos índios, de suas táticas de guerrilha
simbólica, jurídica, mediática, contra o Aparelho de Captura do
Estado-nação. Um Estado que vai levando até às últimas consequências seu
projeto de destruição do território que reivindica como seu. Mas a
terra é dos povos.
Concluo com uma alusão ao nome de uma rua nn
muito distante desta Cinelândia onde estamos agora. Em Botafogo existe,
como vocês todos sabem, a Rua Voluntários da Pátria. Seu nome provém de
uma iniciativa empreendida pelo Império em sua guerra genocida (e
etnocida) contra o Paraguai — o Brasil sempre foi bom nisso de matar
índios, do lado de cá ou de lá de suas fronteiras. Carente de tropas
para enfrentar o exército guarani, o Governo imperial criou corpos
militares de voluntários, “apelando para os sentimentos do povo
brasileiro”, como escreve o verbete da Wikipedia sobre a iniciativa.
Pedro II apresentou-se em Uruguaiana como o “primeiro voluntário da
pátria”. Não demorou muito e o patriotismo dos voluntários da pátria
arrefeceu; logo o Governo central passou a exigir dos presidentes das
províncias que recrutasse cotas de “voluntários”. A solução para esta
lamentável “falta de patriotismo” dos brancos brasileiros foi, como se
sabe, mandar milhares de escravos negros como voluntários. Foram eles
que mataram e morreram na Guerra do Paraguai.
Obrigados, escusado dizer.
Voluntários involuntários. Pois bem. Os índios foram e são os
primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram
cair-lhes sobre a cabeça uma “Pátria” que não pediram, e que só lhes
trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui
nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como
formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os
involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou
desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca
ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos
podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que
representamos a terra — esta terra. Não a “nossa terra”, mas a terra de
onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque
'outra' é a nossa vontade.
* * *
Notas:
1 “A
palavra 'indígena' vem do «lat[im] indigĕna,ae “natural do lugar em que
vive, gerado dentro da terra que lhe é própria”, derivação do latim indu
arcaico (como endo) > latim] clássico in- "movimento para dentro, de
dentro" + -gena derivação do rad[ical do verbo latino gigno, is, genŭi,
genĭtum, gignĕre "gerar"; Significa “relativo a ou população autóctone
de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo
colonizador” ...; por extensão de sentido (uso informal), [significa]
“que ou o que é originário do país, região ou localidade em que se
encontra; nativo”. (Dicionário Eletrônico Houaiss)
2 O primeiro
nome do SPI republicano (Serviço de Proteção aos Índios) era SPILTN:
Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores
Nacionais. Foi SPITLN de 1910 a 1918, depois só SPI, até virar FUNAI em
1967, ao cabo de uma CPI que revelou uma infinidade de abusos,
desmandos, violências variadas, explorações e outras benesses protetoras
conferidas pelo Estado.