"Os Brancos só nos tratam como ignorantes porque
somos gente diferente deles. Mas seu pensamento é curto e obscuro; não consegue
ir além e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. […] Os Brancos não
sonham longe como nós. Eles dormem muito, mas só sonham consigo mesmos" (Kopenawa & Albert 2010: 411-12). Recomeço como abri o
capítulo final de minha dissertação. Com o xamanismo das palavras amazônicas. Enfim
volto a refletir àquelas (estas) palavras. 2018 cede e segue em sede de sonho, soa a
hora.
Nos últimos dias andei vertendo em espasmos uma
leitura do "Capitalismo como religião" (coisa que há quem viva), de
autoria de W. Benjamin, um dos últimos livros que comprei em João Pessoa antes
de ir embora da última vez. da última vez Benjamin deixou de ser apenas autor
de mais um título na estante, encarnou-se em ossos e fôlego, hoje sai andando. Sonho
"a política do sonho contra o Estado: não o nosso “sonho” de uma sociedade
contra o Estado, mas o sonho tal como ele é sonhado em uma sociedade contra o
Estado." e para conhecer é preciso estranhar-se, logo, " todo sujeito
é sempre um outro"sujeito", e é sempre mais um".
Um duplo, seu outro. A raiz do barro, o pó da terra. O
literal cosmológico ou o dado cosmogônico do agora, seja temporal ou alegórico
é que foi preciso que yámi oxorongá, com seus pássaros na mais alta árvore, por
meio de uma futura yanifá desfizesse o que um dos cativos de Odé foi na mata
caçar e cativar também por sua vez uma escrava de Iemanjá, por isso tanto mar. Só
que as Yámis quando acabam com algo não o fazem pela metade nem sem prazer,
elas podem destruir até aqueles que a invocam, seja por medo do risco da
revolta de verem o seu feito realizado, ou seja por simples garantia de
cumprimento de seu trabalho.
A destruição é consubstanciar todo objeto do fascínio
e o sentimento de indignação que move a ação pelo ato em geral corporal e
mágico da causação da dor impetrada contra a vítima/alvo da magia. o
contrafeitiço contra a bruxaria quando esta não lhes tira a vida, a depender da
evolução espiritual da agente, é um mistério silencioso operado em vaga hora
soturna. é como se em outras palavras 2017 fosse um grande intervalo de
aprendizado sobre como viver depois do fim do mundo.
Depois do Temer, Charlottesville, Rio Doce,
(catástrofes em série coletivas e pessoais...) depois de tudo, será que me faço
entender? parece que há uma forma melancólica de tudo pairando sobre uma
espessa nuvem de pessimismo paralisante como um gás, uma arma química
desconhecida. nos parece impossível recuperarmos ou inventarmos uma narrativa
cosmogônica possível, nem para nossos clãs, leia-se famílias, nem para
coletividades maiores, parece um tempo interrompido, um interdito à
"histórias que contem histórias", controvérsias políticas e
ideológicas e traduções culturais e poéticas à parte.
Atualizações de ciclos de vida rituais ou a
mobilização de recursos mnemônicos à "gestão metafísica da morte" ou
o entendimento comum do "xamanismo como diplomacia cósmica" ao menos
poderiam reagrupar as forças perceptivas da imperceptibilidade da
permeabilidade do passado imantado no presente devir futuros. Não escapamos das
transformações entre a experiência e suas perspectivas. A grande passagem ou as
várias passagens (vide Benjamin) de uma prosa em escuta ao
"espírito-mestre" da floresta e dos animais, sem querer me antecipar,
mas 2018 promete uma um colérica e convulsionada estação que se ou desembarca
ou se vai à guerra: no nosso caso, narrar a tempestade ou a trégua não é fuga,
nem saída, é acender um fósforo de soslaio no túnel não iluminado.
Assim, quando Oxalá-Odudua/Obatalá-Orixalá toma e
torna Ifá, oráculo de Oyó, o quebrar das cabaças de onde escorrem o fluxo é um
contra-fato/contra-fogo da criação. Um anti-ato criativo. Uma gênese negativa.
que encontra seu correspondente negativo positivado, quando Egungun abraça Ikú
em consubstanciação à morte, esse -(zero cosmológico)- comum de onde se parte à
matéria humana ou à forma ancestral de pedra, planta, bicho, águas, estrela, ou
puro vento - "forma- conteúdo", via Oyá-Balé, e ela, em si, revela o
gosto nada na boca seca, num WAW...mas não quero fazer filosofia política da
natureza cosmológica para máquinas, seus algoritmos e receptores autômatos, se
aqui ainda houverem leitores, enfim "A humanidade inteira perecerá nesta
varredura purificadora; os Mbyá, porém, serão recriados por Nhanderu, para
repovoar um mundo renovado; já os Brancos perecerão definitivamente, desta vez
não sobrará ninguém dessa espécie maldita para recomeçá-la."
P. S. * como a que se segue,
todas a citações se encontram em: Danowski, Déborah Há mundo por vir? Ensaio
sobre os medos e os fns / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. –
Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie : Instituto Socioambiental, 2014.
"Na origem, enfim, tudo era
humano, ou melhor dizendo, nada não era humano (jabotis à parte, segundo nossos
Aikewara). Um número considerável de mitos ameríndios, e, talvez um pouco menos
comumente, de diversas outras regiões etnográficas, imaginam a existência de
uma humanidade primordial (seja simplesmente pressuposta, seja fabricada por um
demiurgo) como a única substância ou matéria a partir da qual o mundo viria ser
formado. Trata-se assim de narrativas sobre o tempo de antes do começo dos
tempos, uma era ou um éon que poderíamos chamar “pré-cosmológico” (Viveiros de
Castro 2007). Após uma série de peripécias, parcelas da humanidade originária —
não completamente humana, pois, embora antropomorfa e dotada de faculdades
mentais idênticas às nossas, essa raça primeva possuía grande plasticidade
anatômica e uma certa propensão para condutas imorais (incesto, canibalismo) —,
parcelas desta “primigente” vão-se transformando, de modo espontâneo ou, mais
uma vez, em resultado da ação de um demiurgo, nas espécies biológicas,
acidentes geográficos, fenômenos meteorológicos e corpos celestes que compõem o
cosmos atual. A parcela que não se transformou, permanecendo essencialmente
igual a si mesma, é a humanidade histórica, ou contemporânea."
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2.12.2017
2.12.2017
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