OS CABOCLOS
FLORESTAS DE RITOS, ENCRUZILHADAS DE MITOS.
“Erês, Caboclos Boiadeiros
Mãos
de cura, Morubixaras
Cocares,
Zarabatanas Curares,
Flechas
e altares, a velocidade da luz
O
escuro da mata escura, o breu o silêncio a espera
Eu
tenho jesus maria e josé e todos os pajés
em
minha companhia e o menino deus
Dorme
e brinca no meu sonho, o poeta me contou
[...]
Estou
no Recôncavo
Estou
em Fez
[...][1]”
*
**
***
**
***
(Letras de músicas recolhidas em meu trabalho de
campo, entoadas pelos Caboclos, são em geral temas ou motes de letras e canções
de samba-de-roda muito comuns pela região do Recôncavo)
***
“Ê sabiá, bem-te-vi
não tem coroa,
Eu vim sambar
na casa de gente boa (2x)
Não venha, não
Não venha, não
Não venha, não
Que esse samba
É de engano,
Não venha, não.
Eu vou sim
Eu vou sim
Eu vou sim
Que samba
de engano
foi feito pra mim”
*
“Eu subi o morro
Eu desci a serra
Cuidado com a onça
Quase
que a onça me pega”
*
(: em palavras assim me disse um ogã-axogum do Ilê Axé Alaketu Oyá Funan)
***
[
Da próxima vez que você pensar em antropologia quando ouvir algo sobre trabalho-de-campo
– leia uma etnografia. ]
***
Sambaquis de 2.800 anos
AP (até o presente), em Periperi, Salvador. Sambaqui
da Pedra Oca.
[...] Alguns interlocutores me disseram que os animais
originários eram demasiado grandes e ferozes, e que, no início do tempo
histórico, todos eles foram mandados embora do Xingu pelos gêmeos Sol e Lua:
“eles estão na África; aqui só ficou a onça”.[2]
Em
1549 Salvador é fundada.
As
relações afroindígenas são notadas até quando não enunciadas. Visto que, como aponta
Manuela Carneiro da Cunha
Basta ver a extrema setorização da longa série de revoltas
baianas de 1798 a 1847 envolvendo a população não branca: pardos na famosa
Revolta dos alfaiates (foram presos cem pardos livres, quatro pardos libertos,
nove escravos pardos e apenas um africano mina, aliás absolvido); hauçás[3]
escravos de Salvador e de Santo Amaro em 1807; hauçás e nagôs escravos do
Recôncavo e de Salvador em 1809 (CUNHA, 2012, p.38)
Entre todos esses “pardos” do
comentário de Cunha, pode-se presumir que sejam e se tratem dos caboclos, ou
seja, descendentes bantupis desta
família de amefricanos. Então, só com esforço de identificar em alguma medida o
ponto de partida da reprodução social, é que possível tentarmos compreender o
que aconteceu no período que antecede ao fim da escravidão e posteriormente no
que toca a constituição das relações de sociabilidade afroindígena na Bahia.
Mas é claro que essas relações de implicavam não só trânsitos cosmológicos.
Mas nem tudo separava internamente essa população. Existem casos de solidariedade que atravessam a linha de liberdade, os mais óbvios sendo os que se assentam no parentesco: mães e pais resgatam filhos, amantes e esposos se resgatam mutuamente. Mas há também alguns exemplos de libertos que ajudam membros da mesma etnia a comprar sua alforria. É o que se contava dos carregadores de café do porto do Rio de Janeiro, todos minas da Costa do Ouro. Dizia-se o mesmo dos minas ou dos “cantos” nagôs da Bahia, acrescentando que eles faziam severamente pagar aos forros o preço de sua liberdade. As irmandades religiosas de negros e pardos também emprestavam, como veremos, dinheiro a seus membros para a compra de sua alforria (A. J. R. Russell-Wood, 1974: 91).
***
“Olha aê
Tempo
Olha aê,
ah...
Olha aê Tempo
Olha aê Tempo
Sua
bandeira tá no ar” (2x)
[...]
Mesmo em 1842, um viajante inglês, James Wetherell[4], ainda é capaz de notar que sobre os nativos das terras da Baía de Todos os Santos, suas “[...] nações, quando da descoberta da Bahia, só podiam apontar para a tribo dos Tapuias os quais, por sua vez, foram eliminados pelos Tupinambás que, segundo Southey[5], eram os donos do país quando este foi descoberto”. Os tapuias eram indígenas que faziam parte do grupo étnico que ocupava o interior da Bahia e que se dividia em inúmeras herdas das famílias gê, tronco de numerosas tribos, em especial no Maranhão e Ceará.
Na amplitude deste universo os tupinaês
– tupinais – tribo indígena antiga pertencente ao grupo etno-linguístico
tupi-guarani, também ocupavam o estado baiano e estavam para o lado do sertão a
oeste dos tupiniquins e tamoios que ocupavam o sul. Os aymorés – também
chamados botocudos – ocupavam os estados da Bahia, Espírito Santo e Minas
Gerais. Segundo J. Wetherell: “os índios botocudos são trazidos algumas vezes à
cidade por missionários italianos”. Sobre
os aymorés ainda há um detalhe indicado por Jocélio Teles, quando este diz que
o caboclo Sultão das Matas é descendente desta tribo, o que me faz recuperar
uma cantiga de Sultão das Matas, na casa Ilê
Axé Alaketu Oyá Funan, quando este diz: “Tupinambá, eu te peço, [...]/Saia
do seu lajedo/ de vez em quando/ passe por aqui”.
Em outra situação, no Terreiro de Caboclo Guarani de Oxóssi, ouve-se o diálogo enquanto dançavam em frente aos atabaques, os caboclos, revezando-se nos cantos:
JUREMA
– “Eu não sou jeje/ Eu não sou nagô/ A minha
nação/ é Okorokô”.
TUPINAMBÁ
– “Dói, dói, dói, dói/ um amor faz
sofrer/ Dois amor faz chorar/ Quem é você/ pra deitar em minha cama? [...]”
JUREMA
– “Deixa amanhecer/ Deixa amanhecer pra
ver/ Deixa amanhecer pra ver/Deixa amanhecer”.
Apesar
dos diálogos, aparentemente desencontrados, estão contidos nestas falas
cantadas, dados muitos valiosos. Primeiro, a autodeterminação de que o caboclo
não é jeje nem nagô, é um achado brilhante para a hipótese que estou levantando.
O que, por si só, atesta a validade dos dados encontrados enquanto instrumentos
para operar e avaliar os vetores da desconstrução da mestiçagem. Por meio do
reconhecimento empírico da “irredutibilidade” dado pelo campo e da operação do
princípio da “contramestiçagem”, resultante da leitura dos materiais ameríndios
e afro-americanos sem reduzirem-se a sínteses ou reduções à interpretação da
“relação afroindígena”, enquanto possibilidade de aferição, a posteriori, da hipótese e o encontro
com resultados que avaliem a validade da tese aventada.
Em
seguida, pode-se postular uma narrativa da “conquista” que se entrevê nas
palavras dos caboclos: o Tupinambá quando diz que o amor “dói, dói, dói [...]
faz sofrer, faz chorar” e a Jurema que responde dizendo “deixa amanhecer pra
ver”. A sugestão desse clima se apresenta sob a forma de desafio, quando
Tupinambá pergunta “quem é você pra deitar na minha cama? ”, a resposta de
Jurema parece ecoar de dentro do diálogo novamente, em tom ainda mais
provocativo: “Deixa amanhecer pra ver/ Deixa amanhecer pra ver”.
***
Cosmopoética.
Sociologia afroindígena das transformações[6] (bantupi/jeje-nagô). Tecnologias
de acesso aos ancestrais. Caboclos. Candomblés do Recôncavo. Cachoeira. São
Félix. Muritiba.
[2] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Esboço de cosmologia yawalapíti. In: a
Inconstância da Alma Selvagem. Cosac Naify.
– São Paulo. 2013. P. 32
[3] Detalhe de nota: “Os africanos
eram designados genericamente pelo seu porto tradicional de embarque ou por uma
identidade étnica cuja precisão era variável. Assim costumava-se, no século
XIX, chamar genericamente de cabinda a qualquer escravo da África Central e nego
mina a qualquer escravo da África Ocidental, em razão de o porto de embarque
principal da escravaria dessa vasta região ter sido, até sua captura pelos
holandeses em 1637, o castelo São Jorge da Mina, hoje no Gana. Entre os mina
figuravam, por exemplo, os tapa (nupe), os hauçá e os nagô. Nagô correspondia
ao que, a partir do final do século XIX, se passou a chamar de iorubá. Os nagôs
provinham de várias cidades-Estado, frequentemente em guerra entre si, e as
denominações mais precisas remetiam a essas cidades. Assim, os egbás eram os
habitantes de Abeokuta, e os ijexás, os da cidade de Ilesha. Cada uma dessas
cidades usava escarificações específicas no rosto, que se reencontram nas
fotografias de escravos no Brasil. Cunha, Manuela Carneiro da Negros, estrangeiros:
os escravos libertos e sua volta à África / Manuela Carneiro da Cunha. — 2a ed.
rev. ampl. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.p.38
[4]
WETHERELL, James. Brasil Apontamentos sobre a Bahia
(1842-1857). Apresentação e Tradução Miguel P. do Rio-Branco. (Instituto de
Coimbra). Edição do Banco da Bahia S/A. Salvador. 19_
[5]
Robert Southey
(1774 -1843), poeta e historiador inglês que escreveu uma História do Brasil publicada
em Londres entre 1810 e 1819.
[6]Expedientes
anteriores nos facultam a investida e o uso da abordagem; ver: BANAGGIA,
Gabriel. Religiões de matriz africana em perspectiva transformacional. R@U,
6 (2), jul./dez., 2014: pp. 57-70; GOLDMAN, Marcio. 2008. Religiões de
matriz africana no Brasil: uma perspectiva transformacional. Programa de
apoio a projetos de pesquisa na área de humanidades, 26, FAPERJ, 2008; VIVEIROS
DE CASTRO, Eduardo. “Transformação” na antropologia,
transformação da “Antropologia”. MANA 18(1) pp.151-171, 2012.
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