Monday 12 December 2016

"Quase-evento: esboço de uma ontologia da experiência literária (ou: o que é fazer um programa?)", Alexandre Nodari.

Como pretendo demonstrar em outra oportunidade, não se trata apenas de um empréstimo terminológico, mas de uma afinidade mais estrutural entre a teoria do perspectivismo ameríndio e o conceito de ficção que venho tentando construir. A proximidade se deixa ler nas entrelinhas da própria conferência de Viveiros de Castro, da qual tomo emprestada a expressão (“A morte como quase-acontecimento”), quando ele afirma que a “quasidade é o modo de existência por excelência da morte, a narrativa: a morte é algo sobre o que você fala”. Partindo do mote ameríndio do encontro sobrenatural na floresta (por exemplo, o encontro de um índio com uma onça que fala, que lhe dirige a palavra), em que duas perspectivas-de-um-sujeito (ou seja, dois mundos) se sobrepõem, EVC explora as três possibilidades advindas de um tal contato: 1) responder ao ser sobrenatural e ser capturado para seu mundo; 2) voltar para casa, mas manter-se em silêncio, em choque, o que geralmente termina com a morte se não houver a agência xamânica de cura (essa segunda possibilidade é uma variante da primeira, pois os seres sobrenaturais, onças que falam com humanos por exemplo, soem ser espíritos de mortos atrás de seus parentes ainda vivos); 3) voltar para casa e narrar para seus parentes o acontecido. Ou seja, um encontro sobrenatural na floresta é uma tentativa de reconfiguração, de uma nova plasmação da realidade, de remoldá-la (e esse é o sentido originário de fingere: dar forma, moldar, plasmar): a onça que fala está realizando uma finta ontológica ou perspectiva. O perigo de levar o drible consiste em perder a própria subjetividade: passar completamente pela reconfiguração da realidade é sofrer uma reconfiguração completa da própria natureza. Portanto, o sujeito que tem um encontro sobrenatural deve torná-lo experienciável por meio da narrativa, ou seja, convertê-lo em uma experiência, em um saber de quem passou por uma prova, um teste, um perigo, mas também um saber que se arranca da morte (ex-perire). Mas porque a narrativa é essencial à sobrevivência do sujeito? Para além de qualquer visada psicologizante, poderíamos arriscar dizer que ela permite vivenciar o acontecimento tomando a distância mínima necessária em relação a ele, permite vê-lo e experimentá-lo ao mesmo tempo de dentro e de fora. A disjunção temporal da narrativa, a duplicação entre presente da narração e o passado da narrativa, transparece também em uma disjunção subjetiva, em que o sujeito se duplica em um pronome reto (eu) que narra e um pronome oblíquo (mim) que é personagem ou objeto da narração. Ou seja, a narrativa reduplica a estrutura do quase-acontecimento, mas invertendo-o: à visão de uma onça que ameaça definir a subjetividade pela fala corresponde um sujeito que narra –  fala –  o que não deveria ter visto. O sujeito que se depara com uma onça que fala deve ser capaz de abduzir desse encontro uma agência, ou seja, tomá-lo como um artifício, e, depois disso, contra-inventá-lo por meio de uma narrativa em que o artífice, quem ocupa a posição subjetiva, é o narrador. A quase-morte é uma forma de experimentar obliquamente a morte: a narração dessa experiência é uma forma de responder obliquamente ao chamado da onça, é uma forma de dizer não à morte. Se a narrativa é o modo de existência por excelência da quasidade é porque ela tece a distância mínima e imperceptível com o acontecimento, sendo capaz, por sua estrutura, de tornar experienciável e comunicável a consistência existencial da transformação da realidade, da morte: é a narrativa que garante que o “quase acontecer algo [... seja] um modo de acontecer outra coisa que aquele algo” – uma transformação em experiência da transformação da realidade, uma reconfiguração da reconfiguração da natureza. E é aqui que o tema do encontro sobrenatural com a floresta pode permitir uma reavaliação do estatuto ontológico das ficções, sua consistência existencial – o que deixarei, porém, para desenvolver em outra ocasião.

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