Como
pretendo demonstrar em outra oportunidade, não se trata apenas de um empréstimo
terminológico, mas de uma afinidade mais estrutural entre a teoria do perspectivismo
ameríndio e o conceito de ficção que venho tentando construir. A proximidade se
deixa ler nas entrelinhas da própria conferência de Viveiros de Castro, da qual
tomo emprestada a expressão (“A morte como quase-acontecimento”), quando ele afirma
que a “quasidade é o modo de existência por excelência da morte, a narrativa: a
morte é algo sobre o que você fala”. Partindo do mote ameríndio do encontro
sobrenatural na floresta (por exemplo, o encontro de um índio com uma onça que
fala, que lhe dirige a palavra), em que duas perspectivas-de-um-sujeito (ou
seja, dois mundos) se sobrepõem, EVC explora as três possibilidades advindas de
um tal contato: 1) responder ao ser sobrenatural e ser capturado para seu
mundo; 2) voltar para casa, mas manter-se em silêncio, em choque, o que
geralmente termina com a morte se não houver a agência xamânica de cura (essa
segunda possibilidade é uma variante da primeira, pois os seres sobrenaturais,
onças que falam com humanos por exemplo, soem ser espíritos de mortos atrás de
seus parentes ainda vivos); 3) voltar para casa e narrar para seus parentes o
acontecido. Ou seja, um encontro sobrenatural na floresta é uma tentativa de
reconfiguração, de uma nova plasmação da realidade, de remoldá-la (e esse é o
sentido originário de fingere: dar forma, moldar, plasmar): a onça que fala
está realizando uma finta ontológica ou perspectiva. O perigo de levar o drible
consiste em perder a própria subjetividade: passar completamente pela
reconfiguração da realidade é sofrer uma reconfiguração completa da própria
natureza. Portanto, o sujeito que tem um encontro sobrenatural deve torná-lo
experienciável por meio da narrativa, ou seja, convertê-lo em uma experiência,
em um saber de quem passou por uma prova, um teste, um perigo, mas também um
saber que se arranca da morte (ex-perire). Mas porque a narrativa é essencial à
sobrevivência do sujeito? Para além de qualquer visada psicologizante,
poderíamos arriscar dizer que ela permite vivenciar o acontecimento tomando a
distância mínima necessária em relação a ele, permite vê-lo e experimentá-lo ao
mesmo tempo de dentro e de fora. A disjunção temporal da narrativa, a
duplicação entre presente da narração e o passado da narrativa, transparece
também em uma disjunção subjetiva, em que o sujeito se duplica em um pronome
reto (eu) que narra e um pronome oblíquo (mim) que é personagem ou objeto da
narração. Ou seja, a narrativa reduplica a estrutura do quase-acontecimento,
mas invertendo-o: à visão de uma onça que ameaça definir a subjetividade pela
fala corresponde um sujeito que narra – fala – o que não deveria
ter visto. O sujeito que se depara com uma onça que fala deve ser capaz de
abduzir desse encontro uma agência, ou seja, tomá-lo como um artifício, e,
depois disso, contra-inventá-lo por meio de uma narrativa em que o artífice,
quem ocupa a posição subjetiva, é o narrador. A quase-morte é uma forma de
experimentar obliquamente a morte: a narração dessa experiência é uma forma de
responder obliquamente ao chamado da onça, é uma forma de dizer não à morte. Se
a narrativa é o modo de existência por excelência da quasidade é porque ela
tece a distância mínima e imperceptível com o acontecimento, sendo capaz, por
sua estrutura, de tornar experienciável e comunicável a consistência existencial
da transformação da realidade, da morte: é a narrativa que garante que o “quase
acontecer algo [... seja] um modo de acontecer outra coisa que aquele algo”
– uma transformação em experiência da transformação da realidade, uma
reconfiguração da reconfiguração da natureza. E é aqui que o tema do encontro
sobrenatural com a floresta pode permitir uma reavaliação do estatuto
ontológico das ficções, sua consistência existencial – o que
deixarei, porém, para desenvolver em outra ocasião.
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